29.11.07

ela e o corredor

passara a amar os corredores.
não fazia outra coisa a não ser assistir corridas.
homens correndo.
nas ruas, tratava de tropeçar em gente correndo.
em casa, deitava-se com corredores.
era isso que havia decidido a partir de um dia em que viu ele.
um corredor nato, um atleta americano de primeira categoria, um vencedor, o mais rápido do mundo, o negro poderoso e confiante, o símbolo do talento.
amava a corrida por causa dele. amava ele.
o primeiro encontro foi mediado por uma amiga velha toda recauchutada, muito simpática e generosa. o tipo da amiga que a colocaria na calçada da fama. era um desafio e uma provocação. a velha senhora gostaria de saber se ela aguentaria amar a corrida, a elegante e nobre corrida.
e ela não fez outra coisa senão se encantar. pois o corredor reúnia em apenas um corpo tudo que desejara para um homem: era margem-centro, um negro marrom carrancudo e gostoso, um negro que corria na vida e aparecia, um atleta profissional e vencedor, canalizava toda a sua energia para o esporte e fazia isso muito bem. era pefeito. era homem, era gostoso, tinha olhos enormes arredondados, nariz grande, ocupando grande parte do rosto, bocas grossas e recheadas, a musculatura da face saltava aos olhos que se espalhavam em torno do nariz, tudo aquilo indo convergir para a boca negra grossa, um corpo pleno de puro desejo. ela estava completamente apaixonada.
e desde então seu mundo virara corrida. queria saber tudo sobre correr. pois seu homem era a pura corrida.
decidiu de manhã acordar correndo. no café, nada comia, pois apenas o líquido podia correr, ou escorrer pela garrafa, pelo copo e por sua boca, seu corpo interno. adorava banhos, sentia tudo escorrer. adorava vento, que a puxava para todos os lados, exigia corrida dela e assim ela se sentia estimulada.
tomou vício pela fala corrida. não sabia mais falar com pausas, a não ser que estas corressem também. falava falava e falava correndo sabendo que tudo deveria chegar a reta final e cruzar a linha de chegada. mas para chegar era preciso sair de tudo correndo, entrar e sair correndo, correr ininterruptamente pois assim, como o seu homem alcançaria o talento. e não se enganava nunca. estava ali, ou aqui, para tocar no talento, no seu homem, chegar a ele e, para isso, só correndo, com muita velocidade, só sendo vulto, um flash fotográfico.
e então passou a não mais a aparecer, mas surgir. teve sorte de conseguir o emprego dos sonhos de agora, o emprego rápido, um emprego que permite a ela aparecer muito, mas em diversos lugares diferentes, movimentando-se entre eles de modo veloz para jamais interromper sua corrida.
o que resultou então que sua imagem era fortuita. admitia que os outros a vissem, mas por breves momentos. sua presença era sentida pelos que a conheciam da mesma forma como sentia a corrida de seu homem. e a presença de seu homem em sua vida. ela o via correndo de forma corrida. eram sempre momentos rápidos, fugazes que a preenchiam por completo e assim começou a se tornar, ela própria uma corrida. poderia estar por algumas horas em um mesmo lugar, mas ela não parava. não havia lugar fixo, apenas uma fixação. correr para alcançar, para chegar.
adorava olhar. pois as pálpebras cortavam, repartiam tudo e tudo se tornava fumaça. tudo passava tão rápido que corria, tudo corria para ela. e ela corria mais ainda.
até que um dia, procurando sem encontrar sua velha amiga, pois esta também aparecia em raros momentos fugazes e indeterminados, sentiu que algo corporal ameaçava correr para além dela. sentiu que a corrida que realizava em si mesma estava querendo ultrapassá-la de repente. não notara que, de fato, continuava correndo mas depois de seu corpo. seu corpo avançava velozmente para a linha de chegada. neste momento, sentiu faltar ar, pois o ar já não estava mais nela, já havia corrido para chegar mais rápido, a abandonara, e assim o seu coração então disparou em uma frenética corrida que nem mesmo ela era capaz de controlar. suas pernas resolveram então correr ao modo delas, para todas as direções. a perna começou a correr para o braço e o braço para o baço que correu para os olhos que correram para o estômago que correu para o cu que correu para o umbigo que fugiu corrido de medo de tudo que estava vendo. sem saber, ela procurou ajuda, tentou gritar à velha senhora, pois poderia ser que a dona estivesse por perto e aparecesse de imediato para ajudá-la. mas o grito havia corrido. tudo estava correndo. e ela sentiu-se retardatária. e nesse momento resolveu parar.
agora ela era lembrança pros que ficaram na lentidão diária de tudo.
parou e chegou. onde quando e como, não se sabe.
por certo, perseguiu seu maior desejo.
e foi tomada, assaltada, cruzada por ele.
depois disso tudo parou.
ela se consumou.
e o corredor se aposentou.

1 comentário:

Anónimo disse...

incrível!