24.4.08

Crítica do Espetáculo 'No natal a gente vem te bsucar'

Momentos antes do espetáculo 'no natal a gente vem te buscar' começar, a música instrumental de Edgar Duvivier vai gradativamente aumentando de volume ao passo que a platéia iluminada vai, aos poucos, mergulhando no escuro, tendo, por fim, a cortina vermelha fechada do proscênio como último foco vísivel, na maior intensidade sonora, dissipando-se, luz e som, em um escuro sonoro, dando início à peça. Este processo dura segundos. Na última cena da peça, vê-se uma geladeira, localizada ao centro, no fundo do palco, da qual a personagem de Claudia Jimenez abre a porta, retira um pequeno panetone, come alguns pedaços, e o guarda de novo, fechando o congelador. É nesta geladeira que se encontra também uma árvore de natal, conservada, ou esquecida, no frio artificial. Nesta cena, sem nenhuma fala, quando a porta da geladeira é aberta pela personagem, revela-se a árvore estática, intocada, não bem uma árvore mas um daqueles pinheiros de plástico baratos, produzidos em série, que se compram em lojas de departamentos. O pinheiro, assim, não é bem uma árvore de natal daquelas garbosas, charmosas, que se encontra naqueles filmes sobre natal exibidos a cada final de ano. Um pinheiro com seus galhos espetados, verde musgo, que certamente cumpre a sua função, a de evocar uma tradição, porém sem o mesmo brilho e imponência que aqueles pinheirões gordos e cheios de enfeites e presentes. O fato de a árvore se encontrar onde ela deveria realmente habitar, em temperaturas climáticas baixas, não traz, contudo, um conforto. O frio no qual o pinheiro está situado é asséptico e branco, um habitat sem vegetação e com total isolamento, paredes brancas cuja cor só pode ser notada quando alguém, de fora, abre a porta e deixa entrar luz. Fora isso, o pequeno e barato pinheiro, no frio, encontra-se em profunda escuridão.
O movimento de luz inicial, somado ao volume crescente da música, chamam a atenção dos espectadores para o palco, para que se inicie o espetáculo. Neste breve momento, o foco torna-se um palco cujas cortinas vermelhas permanecem fechadas.
As paredes móveis que compõem boa parte do cenário deste espetáculo são vazadas: como grandes cercas brancas, do chão ao teto, que permitem a entrada parcial de luz. Por entre estas cercas que se vêem as sombras dos atores nas coxias, vultos de presença que rondam o palco durante o espetáculo. O cenário, com isso, ao invés de separar por completo dois espaços, permite que, por breves instantes, as ações que ocorram fora de cena interfiram na própria cena; propõe-se um jogo entre o fora e o dentro, distinto, com isso, da porta da geladeira, que isola o dentro do fora. As movimentações das paredes também evocam aberturas e fechamentos: abre-se cada lateral, revelando o centro, um ponto de fuga perspectivístico, de onde surgem determinados móveis e que, no final, será o lugar da geladeira.
Ao insistir nestas imagens e movimentos cênicos em que se evidenciam aberturas e fechamentos, foras e dentros, crê-se que tais momentos da encenação 'no natal a gente vem te buscar' são deflagadores não só do tema da ação dramática, mas principalmente da atuação dos atores, em especial, da protagonista. O grande assunto do espetáculo parece ser o anacronismo de uma vida. E não se trata de uma existência qualquer: de uma mulher solitária cujos valores, hábitos e costumes seguem, à risca, aqueles traçados por sua família, por uma tradição representada por seus pais. Ao que parece, na vida desta mulher não houve aquele momento de ruptura (pelo qual grande parte dos filhos passam) com os valores paternos, aquele instante em que se olha para os pais e se diz: a partir de agora, eu irei convencionar os meus próprios valores, me diferencio de vocês, assumo uma outra geração, sou de outra idade. A personagem então não duvida, ou questiona, as normas e regras transmitidas: ela faz o certo e o certo é valorado por seus pais. Só que, ao contrário deles, essa mulher não casou; ao contrário deles, ela não teve filhos, não constituiu família, nada disso. Adotando uma espécie de postura infantil, essa mulher obedece aos valores familiares e segue sua vida (deles). Aqui surge uma espécie de impossibilidade e de anacronismo. A personagem é anacrônica, pois tende a viver de acordo com os óculos de sua mãe. Ela parece então não perceber as mudanças de tempo, e não se está falando de modismos e movimentos históricos. Trata-se das mudanças de sua própria família: ela é uma adulta vestida de criança, como nas cenas rememorativas que aparecem na peça. Acreditar no que os pais dizem é não enxergar como eles agem, em suas plenas humanidades, repletas de caminhos e desvios. A personagem vivida por Jimenez parou no tempo, interrupção que foi a sua morte e a de todos ao seu redor. Não por acaso é ela quem vela os mortos: o pai, a mãe, a tia, o irmão. Não por acaso que ela, apesar de não ser espírita, consegue ver e falar com o irmão morto, cuja imagem é conservada na geladeira de sua memória.
Os diálogos presentes no espetáculo possuem um traço forte característico: tudo que se fala, no aqui e no agora do acontecimento presente e teatral, remete-se ao passado. Os diálogos entre a protagonista e seus interlocutores são, todos, lembranças, acertos de contas, memórias de tempos e situações passados já há muito tempo. Neste sentido, a personagem encontra-se em um presente que é um mero rastro do passado, uma espécie de resto ou resquício do que aconteceu. Esta remissão constante da personagem principal remete também a outras duas referências teatrais: de um lado, a Liubov, de 'O jardim da Cerejeiras', de Anton Tchekov, personagem para quem é difícil perceber a decadência de seu jardim, de sua casa, de si. Liubov retorna a sua velha casa, projetando sobre ela, a casa de outrora. Como a personagem de Jimenez, Liubov cola seu presente no seu passado, junção que vale a vida para se separar. De outro lado, há as adaptações do diretor argentino Daniel Veronese para dois textos do mesmo Tchekov, 'Espía Una Mujer Que Se Mata', a partir de 'Tio Vânia', e 'Un Hombre que se Ahoga', a partir de 'As três irmãs'. Tais adaptações cênico-dramaúrgicas empenhadas por Veronese baseiam sua força justamente por serem adaptações espácio-temporais: o diretor desloca para o contexto histórico atual as situações e conflitos das personagens desenhadas pelo autor russo. As ações, tanto de 'um hombre' quanto de 'espia', se passam em um contexto de classe média decadente atual, casas argentinas pequeno-burguesas, periféricas, ninhos de personagens que revelam seus descompassos temporais, modos distintos de se parar no tempo.
A evocação de Veronese aqui talvez sirva para intermediar a ligação de Naum Alves de Souza com Tchekov. A peça de Naum parece lidar com a espécie de realismo que se serve Tchekov. Só que em 'No natal', este realismo, presente sobretudo na interpretação e nos figurinos da protagonista, reforça justamente seu descompasso temporal: aquela mulher, quando se encontra no tempo presente e não nos momentos de rememoração, veste-se com saias longas, blusas estampadas sem nenhum decote, com um grande babado sobre os seios: trata-se de uma crente, uma mulher conservada em sua honestidade, caráter e infantilidade. O realismo de quee lança mão Naum, evocado também pelo cenário, quando este se torna uma sala-de-estar (da casa na infância, do retiro, da casa atual), transforma-se em um recurso trabalhado de modo muito perspicaz no sentido de revelar as convenções nas quais a personagem de Claudia Jimenez se encontra. O realismo ali opera o mundo da protagonista. E é justamente através dele em que se percebe o choque dos tempos.
Aquela mulher é a minha tia Fraça, que vive no interior do Piauí e que, sem casar e só de viver sendo cuidada por e/ou cuidando de seus pais, parece ver a vida da janela. E de fato, ela vê, a minha vida, existência surgida nas encruzilhadas das metrópoles urbanas, com todos os seus desvios e velocidades, da janela. Pois a vida dela é a sua sala de estar. Ou melhor, a vida dela é a sua geladeira, ou a sala de estar de seus pais.

20.4.08

o inseto e seta

inoportuno. tento matar o mosquito com a seta do mouse. como ele poderia cruzar o meu caminho? de resto, não consigo, porém, não me frusto. sei que mosquito só anda sobre a superfície e que a seta que direciono não é atingida nem de perto, nem de muito perto, por este inseto invasor. está certo que julgo inatingível todo esse aparente poder de direção. não posso matar o mosquito apenas movendo o mouse, mas farei o quê? deixarei a seta correr solta sobre a minha tela para tentar fechar o cerco das andanças deste estúpido animal? por este momento, verifico que se fecho o cerco contra ele, fecho o meu cerco e perco todo senso de direção. quero dizer, a seta passa a apontar para onde eu não gostaria que ela apontasse enquanto que o mosquito seria liquidado num gesto de minha mão. seria um lucro para mim, um bom negócio, trocar a suavidade do meu mouse pela brutalidade da mão sobre o mosquito? sei que a tela nos separa mas porque então ele insiste em se relacionar com a minha seta? por mais que haja separação, por mais que meu cérebro admita isso, meu olho não. o mosquito acompanha a seta do mouse e, com isso, obstrui minha visão. eu não vejo a minha seta pois vejo um inseto. e deste fato, poderia ainda me lembrar daquela máxima que diz que o espectador não reclama a paixão, mas simplesmente a imagem dela. ou, em outras palavras, o que importa para o olho não é ser mas parecer. ou ainda, o efeito que no olho produz, a ilusão. meu olho se ilude quando vê o atrevido inseto pousado na seta. meu olho também se ilude quando não vê o inseto e se identifica com a seta. meu olho se ilude quando mata o inseto e deixa livre a seta? ou quando ignora o inseto e mantém as rédeas da seta?
neste momento, preciso parar para tentar compreender a diferença entre o inseto e seta. uma diferença de gênero, um ele e um ela. uma diferença inicial, já que o inseto cerca a seta. ela então se vê envolvida por ele, mas não completamente. se o inseto tem em si a seta, a seta, por fim, se desvencilha do inseto, tornando-se ela mesma uma ela. a seta não é o inseto. e o inseto não é seta. isso é verdade. mas não posso deixar de concluir que do inseto deriva a seta. e da seta origina-se o inseto. e sem inseto, não tem seta, bem como na ausência de seta, não há inseto. e tenho dito.

19.4.08

carinho e ponto.

é uma espécie de atração que me fixa a ela. é uma espécie de conforto. e a melhor espécie genérica. o resumo possível desta mulher é pele e imagem. por ser um corpo entregue a disponibilidade da vida. ela é a mulher mais mulher pois se entrega a vida. ela tem um dom para a felicidade. ela tem um dom para a satisfação. satisfação de um conforto que produz produz e produz. ela produz vida. tanto é que ela só é imagem. tanto é só pele que só vê pele. ela seria a única a notar uma camiseta, ou blusa, amarela. meu xadrez, minha dança, meu ritmo, minha pele. e não só isso. não é nada que se nota. ela não contempla, mas intefere, chega e surpreende. juana é pura surpresa de vida. juana lê os pensamentos. juana pode e deve ocorrer. juana pode e faz surgir tudo e qualquer coisa desde que a coisa seja ela. e ela é qualquer coisa. juana é tudo de pele, presença e afeto. é disto que se fala aqui.
falo de um momento. e este momento denomina-se carinho.
e não se pode dizer mais nada.
quando se fala em carinho, produto tão raro quanto ostentado, quanto comentado, quanto falado, nunca experienciado. a diferença reside neste ponto. juana é carinho. e ponto.

3.4.08

inédito

parei hoje para tentar precisar o momento exato em que nasci para mim. quando foi, na minha história, a origem? quando eu cheguei até mim? quando soube que existo? terá sido quando nasci? mas não lembro deste momento. tentarei aqui lembrar a primeira memória. não consigo. não lembro que idade tinha, como estava meu corpo, se estava triste, fraco, solitário, alegre, satisfeito, confortável. terá sido nos aniversários dos meus primos, quando íamos todos passar o dia no clube? terá sido na experiência de cair da beliche de onde dormia, brincando com minha prima? terá sido o relógio que meu pai quebrou quando recusou a separação? qual foi a última vez em que vi o meu primeiro quarto? como era o meu primeiro quarto? era meu? ou então no interior do piauí, correndo entre mangas e lamas?


qual foi a primeira vez em que pisei no palco?



quando aprendi a jogar? Ou melhor, de que forma jogo?
Não há algo de errado com estas perguntas? não existe aqui uma vontade de reconhecimento? não poderia dizer aqui a frase 'quem sou eu?'? Só não o farei porque tenho limite. não posso dizer que não morreria se estivesse dentro da água, apesar de achar esta figura linda. o mergulho na água, o meio físico acolhedor. nunca imagino a água agindo de modo tão abrupto, apesar de já ter enfrentado enchentes, cachoeiras perigosas, além de viver... a água para mim possui uma alma de coca-cola. a pergunta toda é esta: estou bebendo coca-cola agora ouvindo kid abelha, lembrarei deste momento em que bebo coca-cola e ouço kid abelha? da próxima vez em que eu parar para pensar naquilo que eu não sei, eu terei esta situação aqui, este conforto entranhado nas palavras, como um norte, um afago, um poste de luz, mera referência?
ou melhor, como construirei a minha cidade. porque todo dia é único bem como banal. o que há aqui é a figura da oscilação. é que toda vida precisa de momentos de suspensão.