22.5.08

beckett, laocoonte e letícia parente

Em Film de Beckett tem-se duas câmeras, dois olhares, dois olhos. a primeira delas, é aquela que capta o homem de costas, a parte traseira do corpo está diante da lente da câmera. é aqui em que se percebe o movimento, esta câmera move-se sempre acompanhando, rastreando, ou perseguindo, os passos do homem todo de preto. a outra câmera, estática, trata dos detalhes. em geral, sempre um enquadramento parado de um único objeto, sugerindo ser o foco do homem, o lugar para onde aquele homem dirige o olhar. Este homem que dirige o seu olhar, primeiro na rua e, principalmente em seu quarto, trata de evitar todos os outros olhos, todas as outras visões. ele esconde-se do casal, esconde-se da velha senhora, rasga os olhos enormes e arregalados de um jesus cristo, cobre o peixe o espelho e o papagaio, se livra do gato e do cachorro, fecha a cortina, gira o envelope, enfim, desfaz-se de todo cruzamento de olhares.
há que se lembrar também das cenas com seres humanos, o casal e a velhinha. na cena do casal, há o momento em que ele retira os óculos, e ela coloca os dela, e miram para a câmera. ficam extremamente assustados, conotando um certo asco, e saem do quadro. a velhinha, por sua vez, não aguenta o impacto do olhar da cãmera, o nosso olhar, e desmaia.
Ao final, o homem de preto senta-se em uma cadeira de balanço e, neste momento, abre o envelope que contém umas fotos. nestas fotos estão reproduzidos momentos familiares, exemplares de uma atmosfera burguesa, poses da burguesia funcionando como álbum de família. Cada foto, uma fase de vida. Vemos fotos de um menino no colo do pai, o casamento e a formatura de um jovem, a mãe segurando e a criança e, a última foto mostra um retrato frontal de um homem de sobretudo e chapéus pretos, como o homem que vê a foto, e que, sobre um dos olhos, possui uma venda preta. neste momento, ele rasga todas as fotos, relaxa e adormece.
Há que se lembrar que a primeira câmera possui um movimento dinâmico, realizando giros com o ator e sempre se colocando a uma certa distância daquela figura. nesta relação entre captador e captado, os dois jogos são possíveis: tanto o homem parece fugir do olhar da câmera quanto a câmera parece fugir do olhar do homem.
E ainda: quando o homem começa ver as fotos, esta câmera pára. o movimento então passa a ser o da cadeira de balanço em que o homem repassa seu álbum de família.
Quando o homem adormece, a camera então parte para fitá-lo de frente, o que não aconteceu até agora durante todo film. O sujeito acorda e a câmera recua. ele então dorme, desta vez profundamente. a cãmera então faz o mesmo movimento que o homem quando estava cobrindo os olhares de seu quarto: ela se dirige à parede e a acompanha até parar de costas para o homem. a câmera então se vira e temos aí o senhor da foto, dormindo. Ele acorda e sua expressão é de espanto, como acontecera com o casal e a senhora. O homem então cobre seus olhos por um tempo, os abre depois, e o que ele vê diante de si é a sua própria imagem. O quadro agora foca apenas nos dois olhos do homem, um coberto e outro descoberto. O homem então os cobre novamente e permanece assim. Black out. Film chegou ao fim.
As duas cameras, os dois olhares, ao final, parecem ser os dois olhos do homem: o que há de interessante nisso é justamente a diferença entre uma espécie de olho mais próxima, e outra distante. uma espécie de divisão entre figura e fundo, uma espécie de jogo entre duas perspectivas, gerando uma relação em perspectiva. poderia se pensar talvez até na relação psicanalítica entre o consciente e o insconsciente. Mas a venda no olho do homem sugere que se trata de dois olhares paralelos. um está ao lado do outro, o olho esquerdo e o olho direito. Film sugere uma dissociação entre o que para nós é apenas uma visão. cada olho tem a sua visão. além desta diferença, um é coberto, o outro descoberto. Há um jogo de luz e sombra que define cada olhar: um no escuro, o outro no claro. O contraste claro-escuro, um chiaroscuro. E também uma tensão próximo-distante.
Neste contraste, ou nesta tensão, um movimento deseja se livrar do outro, um olhar foge do outro e, quando eles se encontram, há uma neutralização de um pelo outro, finalizando a sequência.
Há neste film uma relação entre a camera e o objeto captado bastante interessante. esse desdobramentos de olhares que são, aos poucos, cobertos até que, por fim, não há mais saída para o outro olhar, parecem tratar de jogo de poder entre aquele que olha e aquele que é visto. essa luta pelo poder da visão só então expira quando, por fim, tem-se o olhar escuro, o neutro dark cromático que não exibe nenhuma imagem. Essa fuga do olhar, o querer sair de foco, ao mesmo tempo que este foco participa de si, constituindo uma parte, a outra parte, talvez expresse um único corpo que é palco de um duelo entre o esquerdo e o direito, entre um lado e outro, revelando uma dissimetria que não equilibra os lados, mas os anula. Film, por fim, é um corpo, um filme, que encerra esta questão. o corpo de film é o corpo de buster keaton. ou ainda, as duas serpentes são partes do corpo de Laocoonte, em sua pura materialidade escultórica. Laocoonte, os dois filhos e as duas serpentes são um único e mesmo corpo, um grupo escultórico. No caso de Film, talvez teríamos um grupo FILMíco, com partes constituintes que formam um único e mesmo corpo, o corpo das imagens.
É aqui que se pode dar o salto:
No vídeo de Letícia Parente, MADE IN BRASIL, tem-se o corpo que costura a si. Como as serpentes de Laocoonte, enrolam e ferem o próprio Laocoonte, a linha na mão de letícia costura o próprio pé de letícia. Aqui parece haver dos olhares também: o não olhar de letícia (que não aparece) e o olhar da câmera, que mira nos detalhes da produção. Ao detalhe da costura, tem-se o detalhe da cãmera. Neste grupo-corpo fílmico, a coluna vertebral é o detalhe: a atenção está voltada diretamente para os movimentos dos dedos das mãos no bordado da sola do pé. Aqui há também o jogo da câmera com o sujeito: só que um não foge do outro, mas, ao contrário, um parece complementar o outro. a luta de poder, o duelo não está neste filme na relação captador-captado, mas na ação de o agente do ato ser o próprio objeto agido. há então esta auto-referência, uma espécie de ciclo que parece confirmar o sujeito de um modo um tanto irônico: não o destrói, mas o marca com uma marca, o corpo fura a si estabelecendo uma localidade, uma geografia, um território de origem. só que a origem do ato, por exemplo, é o seu próprio fim. a linha que oscila entre o dentro e o fora do corpo, cria para ele profundidades superficiais, se enroscado na pele da sola como as serpentes se enroscam em laocoonte. Aqui também não há as fugas que há em Film. Há uma complacência, uma aceitação da captação, um aceitação do olhar que, se não penetra na intimidade, pelo menos capta o detalhe do corpo.