14.2.08

Quem sabe?

Ontem, domingo, Rodolfo veio almoçar e resolveu fazer as seguintes perguntas à Leila: o que você estava fazendo há exatamente um ano atrás? Você é capaz de se lembrar disso? Sabe o que fez? Diante daquela questão inusita, do teste de memória, Leila, um tanto quanto sem jeito, respondeu imediatamente: claro. estava feliz, pulando o último dia do meu carnaval. Carnaval? Perguntou ele. Carnaval não termina em uma quarta-feira? Sim, mas você se refere ao dia do mês ou ao dia da semana? Refiro-me ao dia do mês. Pois então, não pensei em nenhum dos dois dias, disse ela. Eu estava pensando no primeiro domingo depois da quarta-feira de cinzas, completou. Bem, então. O que você estava fazendo neste mesmo dia do ano anterior? Está melhor assim? Bem, então, está. Lembro-me perfeitamente do dia: monobloco, copacabana. Mais de 150 mil pessoas juntas testando os limites dos corpos. Entre o som e o jogo, entre visões e disposições, os últimos momentos da única semana em que tudo gira. Como poderia me esquecer? Nunca. E você? Eu, disse ele, eu pulei o carnaval. Leila não entendeu e, por um momento, riu debochadamente. Rodolfo não entendeu e, por um momento, contraiu as sobracelhas. Leila compreendeu a sua incompreensão quando entendeu que Rodolfo não havia entendido a sua reação primeira de incompreensão. Ela então falou, Rodolfo, pular o carnaval, quem não pula? Rodolfo, por sua vez, entendeu somente agora a ambiguidade da sua frase e então retificou: eu não tive carnaval. Estava em retiro. Há um ano atrás, eu estava saindo do meu último dia de reclusão. Hoje sou filho do divino, me doei à ele; durante uma semana aprendi a só obedecer, passei a ser escravo do divino e, desde então, meu corpo está livre para o Seu bem querer. Leila: Lembro-me bem disso! Não podíamos nos tocar, não podíamos nos ver, apenas cruzar, ter apenas encontros indiretos... Rodolfo: É. É de família. Lembro-me de uma vez quando estava na casa da minha avó, mãe de meu pai, e estávamos eu, meu irmão e minha avó, já bem velhinha, em sua usual cadeira de balanço. De repente, vemos que ela dormiu, pois havia fechado os olhos. Seu corpo repousava calmo e leve. Em um dado instante, vóvó Carmem começa a balbuciar palavras estranhas utilizando o toma mais grave de sua voz. Seus olhos começaram a se mexer e nós, eu e meu irmão, não sabíamos o que fazer. Ou melhor: reconhecemos logo que vóvó estava fora da área de cobertura ou desligada temporariamente. Vóvó Carmem havia cedido seu corpo ao santo. Imediatamente ligamos para papai que nos aconselhou chamar Pai Miguel. Assim que desligamos o telefone, nos posicionamos ao redor da cadeira de balanços e nos pusemos a cantar a música de Pai Miguel. Eis que Vóvó acorda e não é mais vóvó, mas sim Pai Miguel. Depois daquele momento, ela foi o Pai Miguel. Sabe que minha irmã tem medo destas coisas, disse Leila. Uma vez fomos ao centro de meditação assistir a morte-nascimento do nosso irmão mais velho, o Chico, e, durante a cerimônia, minha irmã, que estava sentada ao meu lado, começa a suar frio e pede a mim que a retire imediatamente daquele lugar. Eu assim o fiz e, quando saímos, minha irmã, com a respiração ofegante ainda, me diz que havia, no interior daquele lugar, perdido o senso de unidade, que sentiu seu corpo se diluindo pelo espaço, como uma pedra de açucar na água. Ela tem pavor disso. Acho que ela não deveria sentir medo, medo não é a palavra certa para a relação que ela mantém para com a religião, observou Rodolfo. Concordo. Mas porque você disse que pulou o carnaval? Ora, porque eu estava recluso. Não, você não estava recluso, você estava tão-somente em um momento importante de passagem da sua vida, como haverão outros, não é certo? De certo modo, retrucou ele. Sim, corrigiu ele. Quem disse que o carnaval não é isso? Metáfora: a vida é como o carnaval? Não, não posso crer. Não escrevi isso. Estou escrevendo, disse Leila, que a relação que você mantém com o seu corpo é uma doação à alguém superior, ou pelo menos, a algum ser que habita outro plano de existência, certo? Sim, correto. Hoje sou escravo do divino. O carnaval para mim é sagrado: é o meu botox, minha cirurgia plástica, meu momento único de transformação: Durante aqueles únicos dias eu sinto-me coletiva, sou toda de todos, sou toda todos. Faço isso justamente para voltar, para ter segundas-feiras em que eu posso trabalhar para ter como viver: comprar comida, pagar contas, ter um carro, amigos e um pouco de lazer. uma vida normal, percebe? Como a nossa, percebe? Qual é a difereça entre nós dois aqui, neste momento, perguntou ela a ele. Qual é? Somos ambos seres em par de igualdade: mesma espécie, mesmos hábitos, mesmo contexto histórico, mesmo tudo. Menos a crença, disse ele. Menos a crença, disse ela. O que eu acredito que você é é diferente daquilo que você acredita que você é, por exemplo. É, é isso, concordou Rodolfo. Os meus dentes: depois que os consertei, virei outra pessoa. Ela: meus cabelos: depois que os cortei, virei outra pessoa. as unhas...a faculdade...a ginástica...a respiração...o cigarro...depois de tudo é que a gente vira outra pessoa. Sim, só depois. O Carnaval é isso não é? É poder acreditar que você pode ser quem você quiser? Uma Leila? Ou talvez um Rodolfo? Quem sabe os dois juntos? Quem sabe outro? Quem sabe Eu? Quem sabe?

1 comentário:

Anónimo disse...

ow aquele layout vermelho era tão melhor