5.3.08

Rotas e Cortinas

porque saiu no le monde diplomatique da última sexta-feira a notícia de que a vingança deveria ser cobrada, ele então passou a planejá-la. sua vida se transformou. as rotinas eram outras. agora o que só lhe passava pela cabeça era uma única coisa, um único assunto, todos os neurônios, tempos e pensamentos eram dedicados a esta nobre causa. evidentemente que havia pensamentos, tempos e neurônios indiretos, cujos procedimentos se relacionavam de algum modo e em algum nível, aos processos da grande causa. tudo então, direta ou indiretamente, convergia para um único edíficio a ser construído com a máxima eficiência e segurança: a vingança. a vez do outro que não ele ruir, rolar montanha abaixo sempre, incorporação de sísifo. só que ele seria o primeiro empurrão. ele teria o prazer de empurrar para baixo. a planta baixa já tudo continha: portas, janelas, quartos, divisões reversíveis, para decisões futuras, cozinhas, tudo. o plano era perfeito.
obviamente que não tinha coragem de assumir a todos que o que ele mais desejava, seu único trabalho e ocupação era a vingança. não. ele escolheu outra reportagem no mesmo jornal, aquela cujo título era "eu te amo demais", folhetim mal escrito por um jovem estagiário atrapalhado e perdido por entre a sua mocidade. esta notícia era digna. por isso foi mostrada. todos acreditaram na dignidade da notícia. a sua dignidade de esconder algo por trás, de não revelar as intenções primeiras, a dignidade de fazer surgir a covardia. sim, pois é preciso ser muito corajoso para produzir a covardia. e este mero folhetim tinha dignidade. razão suficiente para ele ter escolhido ela como carro alegórico de seu carnaval.
a velocidade deste carro é lenta porque depende da força de um conjunto de homens negros que não conseguem ver o que há diante deles, pois a alegoria bloqueia a visão do caminho a seguir. são estes negros que planejavam a vingança. eles remavam o carro alegórico e, enquanto os corpos trabalhavam, as mentes faziam o mesmo. Eles planejavam o momento de interromper o barco, fazê-lo cair montanha abaixo. Pois eles estavam de costas para o caminho e exigiam a visão da frente. não queriam apenas ver de costas.
o filme mudo, pois ele não tem voz, então mostra onde estão guardadas as duas notícias. elas estão juntas, unidas por um grampo metálico. uma depois a outra, é assim a relação que ele travou entre uma reportagem e outra. e a vingança era moça recatada, não poderia sair de casa, apenas mostrar-se à janela quando seus parentes dignos assim a permitiam. a vingança era obediente. porém algo havia através de seu comportamento exemplar, como ela mesma esconde-se por trás da fachada de sua casa. ela não saía de casa nem o de trás da vingança.
vingança planejava também o dia de se livrar da droga da obediência. e decidiu construir o edifício. construía enquanto remava. remava e construía. acreditava que um dia poderia fazer apenas uma coisa. um dia ela não remaria mais. pois a vingança sacrificava-se. sua vida era carregar tanto sua parte frontal quanto aquela traseira. vingança escondia-se ao mesmo tempo que escondia algo. e tudo isso for armado por ele, pois ele a chamou. ela reprovou seu gesto. não deveria ter a criado assim, dessa forma, entre grades e paredes, confinada em suas asas. vingança desejava liberdade. revolta contra a submissão. não gostaria mais de estar relacionada a ninguém. exigia sua autonomia e independência.
o engenheiro então notou que nunca havia notado que estava criando um frankstein. que sua criatura mais útil o aniquilaria através de sua plena funcionalidade que exigia a pura autonomia. a funcionalidade exigia autonomia.
a questão agora é saber se o monstro possui sentimentos. vingança chora? vingança respeita o pai?
não. vingança é a responsável pelo enterro de seu parente mais próximo. será ela que irá decidir a cor do caixão, o arranjo e as espécies de flores, o orador, o cimento, o túmulo, o fim.
aguarde. este filme prossegue.

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