Em Film de Beckett tem-se duas câmeras, dois olhares, dois olhos. a primeira delas, é aquela que capta o homem de costas, a parte traseira do corpo está diante da lente da câmera. é aqui em que se percebe o movimento, esta câmera move-se sempre acompanhando, rastreando, ou perseguindo, os passos do homem todo de preto. a outra câmera, estática, trata dos detalhes. em geral, sempre um enquadramento parado de um único objeto, sugerindo ser o foco do homem, o lugar para onde aquele homem dirige o olhar. Este homem que dirige o seu olhar, primeiro na rua e, principalmente em seu quarto, trata de evitar todos os outros olhos, todas as outras visões. ele esconde-se do casal, esconde-se da velha senhora, rasga os olhos enormes e arregalados de um jesus cristo, cobre o peixe o espelho e o papagaio, se livra do gato e do cachorro, fecha a cortina, gira o envelope, enfim, desfaz-se de todo cruzamento de olhares.
há que se lembrar também das cenas com seres humanos, o casal e a velhinha. na cena do casal, há o momento em que ele retira os óculos, e ela coloca os dela, e miram para a câmera. ficam extremamente assustados, conotando um certo asco, e saem do quadro. a velhinha, por sua vez, não aguenta o impacto do olhar da cãmera, o nosso olhar, e desmaia.
Ao final, o homem de preto senta-se em uma cadeira de balanço e, neste momento, abre o envelope que contém umas fotos. nestas fotos estão reproduzidos momentos familiares, exemplares de uma atmosfera burguesa, poses da burguesia funcionando como álbum de família. Cada foto, uma fase de vida. Vemos fotos de um menino no colo do pai, o casamento e a formatura de um jovem, a mãe segurando e a criança e, a última foto mostra um retrato frontal de um homem de sobretudo e chapéus pretos, como o homem que vê a foto, e que, sobre um dos olhos, possui uma venda preta. neste momento, ele rasga todas as fotos, relaxa e adormece.
Há que se lembrar que a primeira câmera possui um movimento dinâmico, realizando giros com o ator e sempre se colocando a uma certa distância daquela figura. nesta relação entre captador e captado, os dois jogos são possíveis: tanto o homem parece fugir do olhar da câmera quanto a câmera parece fugir do olhar do homem.
E ainda: quando o homem começa ver as fotos, esta câmera pára. o movimento então passa a ser o da cadeira de balanço em que o homem repassa seu álbum de família.
Quando o homem adormece, a camera então parte para fitá-lo de frente, o que não aconteceu até agora durante todo film. O sujeito acorda e a câmera recua. ele então dorme, desta vez profundamente. a cãmera então faz o mesmo movimento que o homem quando estava cobrindo os olhares de seu quarto: ela se dirige à parede e a acompanha até parar de costas para o homem. a câmera então se vira e temos aí o senhor da foto, dormindo. Ele acorda e sua expressão é de espanto, como acontecera com o casal e a senhora. O homem então cobre seus olhos por um tempo, os abre depois, e o que ele vê diante de si é a sua própria imagem. O quadro agora foca apenas nos dois olhos do homem, um coberto e outro descoberto. O homem então os cobre novamente e permanece assim. Black out. Film chegou ao fim.
As duas cameras, os dois olhares, ao final, parecem ser os dois olhos do homem: o que há de interessante nisso é justamente a diferença entre uma espécie de olho mais próxima, e outra distante. uma espécie de divisão entre figura e fundo, uma espécie de jogo entre duas perspectivas, gerando uma relação em perspectiva. poderia se pensar talvez até na relação psicanalítica entre o consciente e o insconsciente. Mas a venda no olho do homem sugere que se trata de dois olhares paralelos. um está ao lado do outro, o olho esquerdo e o olho direito. Film sugere uma dissociação entre o que para nós é apenas uma visão. cada olho tem a sua visão. além desta diferença, um é coberto, o outro descoberto. Há um jogo de luz e sombra que define cada olhar: um no escuro, o outro no claro. O contraste claro-escuro, um chiaroscuro. E também uma tensão próximo-distante.
Neste contraste, ou nesta tensão, um movimento deseja se livrar do outro, um olhar foge do outro e, quando eles se encontram, há uma neutralização de um pelo outro, finalizando a sequência.
Há neste film uma relação entre a camera e o objeto captado bastante interessante. esse desdobramentos de olhares que são, aos poucos, cobertos até que, por fim, não há mais saída para o outro olhar, parecem tratar de jogo de poder entre aquele que olha e aquele que é visto. essa luta pelo poder da visão só então expira quando, por fim, tem-se o olhar escuro, o neutro dark cromático que não exibe nenhuma imagem. Essa fuga do olhar, o querer sair de foco, ao mesmo tempo que este foco participa de si, constituindo uma parte, a outra parte, talvez expresse um único corpo que é palco de um duelo entre o esquerdo e o direito, entre um lado e outro, revelando uma dissimetria que não equilibra os lados, mas os anula. Film, por fim, é um corpo, um filme, que encerra esta questão. o corpo de film é o corpo de buster keaton. ou ainda, as duas serpentes são partes do corpo de Laocoonte, em sua pura materialidade escultórica. Laocoonte, os dois filhos e as duas serpentes são um único e mesmo corpo, um grupo escultórico. No caso de Film, talvez teríamos um grupo FILMíco, com partes constituintes que formam um único e mesmo corpo, o corpo das imagens.
É aqui que se pode dar o salto:
No vídeo de Letícia Parente, MADE IN BRASIL, tem-se o corpo que costura a si. Como as serpentes de Laocoonte, enrolam e ferem o próprio Laocoonte, a linha na mão de letícia costura o próprio pé de letícia. Aqui parece haver dos olhares também: o não olhar de letícia (que não aparece) e o olhar da câmera, que mira nos detalhes da produção. Ao detalhe da costura, tem-se o detalhe da cãmera. Neste grupo-corpo fílmico, a coluna vertebral é o detalhe: a atenção está voltada diretamente para os movimentos dos dedos das mãos no bordado da sola do pé. Aqui há também o jogo da câmera com o sujeito: só que um não foge do outro, mas, ao contrário, um parece complementar o outro. a luta de poder, o duelo não está neste filme na relação captador-captado, mas na ação de o agente do ato ser o próprio objeto agido. há então esta auto-referência, uma espécie de ciclo que parece confirmar o sujeito de um modo um tanto irônico: não o destrói, mas o marca com uma marca, o corpo fura a si estabelecendo uma localidade, uma geografia, um território de origem. só que a origem do ato, por exemplo, é o seu próprio fim. a linha que oscila entre o dentro e o fora do corpo, cria para ele profundidades superficiais, se enroscado na pele da sola como as serpentes se enroscam em laocoonte. Aqui também não há as fugas que há em Film. Há uma complacência, uma aceitação da captação, um aceitação do olhar que, se não penetra na intimidade, pelo menos capta o detalhe do corpo.
19.5.08
a mensagem da abertura da novela das oito.
eis que a favela chega e toma conta da abertura da novela das oito. não se engane: trata-se de uma versão miniaturizada, onde não há nada fora de lugar. ao contrário de todos os esforços e suores que transformam um morro em habitats de risco, a mão suavemente vai alocando os barraquinhos, como se tudo estivesse, de fato no seu devido lugar. flashes de fotografias revelando o processo de confecção do mundo miniaturizado revelam sorrisos negros que montam uma favela plana, sem oscilações, sem altos nem baixos, sem declives nem abismos. a camera então capta este mundo a uma certa distância, um grande panorama afastado dos meandros e desvios de quem mora dentro dela. do mesmo modo como copacaban foi mostrada em 'paraíso tropical', de cima, distanciada, sem captações reais, mostrando apenas um mundo pequeno, uma espécie de planta baixa e sem vida, aqui a favela também é captada de cima. o que mais surpreende, no entanto não é isso. quando a abertura se aproxima do fim, aparece um então um grande edifício espelhado, uma espécie de arranha céu, vizinho da favela, justaposto a ela, colado a ela e, eis que já nos ultimos segundos, vemos que, na realidade, se trata de dois prédios iguais, duas torres gêmeas espelhadas, torres essas que se transformam, cada uma, em duas letras: a primeira é o D e o U e a segunda é o A e o S. Duas caras estampadas nas duas torres gêmeas. O que será que isso quer dizer? O que uma favela miniaturizada tem a ver com as torres gêmeas espelhadas? Como pura provocação chego a pensar na crueldade desta abertura que associa a favela e as torres. Talvez a abertura esteja defendendo a idéia de que enquanto houver favela haverá torres gêmeas. Haver torres gêmeas implica, hoje, na explosão terrorista delas. A mão então que, esmaltada, produz a favela, é a mesma que explode as torres? Há aí alguma implicação mais profunda que aborde a violência? Há aí alguma espécie de abordagem àquelas ações denominadas pelos americanos de atos terroristas? O que as torres gêmeas, as DUAS, estão fazendo na favela? Por que, na abertura, não se mostra a mão que produz as torres, mas só as favelas? As DUAS torres representam os dois lados da moeda? Tem-se a favela representada pelo espelhamento de uma torre na outra? Que favela é essa? E de que torre se trata? Qual é a mensagem escondida por trás da abertura da novela das oito?
18.5.08
muro sequer.
como deve ser o mundo em que ninguém sonhou. aquele lugar que nunca ninguém imaginava nada e que nunca ninguém havia imaginado. um espaço todo sem identidade, sem reconhecimento, um espaço que não seguisse a logica do sonho, nem esta daqui, por que esta daqui, em alguma medida é e será sonho. o tempo então, nem se fala. o tempo seria, nem se poderia estar falando de tempo aqui pois não podemos nem pensar como ele seria. se haveria plantas, bichos e respiração, não se sabe. a canção, por exemplo. como seria a canção? como seria o mundo não sonhado? Como seria nada fazer sentido, não por este nada estar contra você, mas justamente por este nada ser algo que faz parte de você, mas você não conhece. você. tudo deve acontecer dentro de você. porque é você quem vê. não sou eu. eu agora estou em outro lugar, fazendo outras coisas e só por uma graça muito divina é que talvez nos encontremos propriamente neste lugar. mas não. eu certamente estou fazendo o que você deveria estar fazendo e vice-versa, porque eu, por exemplo, não leio os meus textos e por isso, justamente por isso, que eles estão todos estragados, sem pontos virgulas acentos maiusculas minusculas tudo tudo sem revisão. porque eu acho que a vida não tem revisão. tem retorno. mas não tem revisão. quero dizer, tem revisão, mas não tem retorno. retorno, retorno mesmo, não há. porque neste mundo o tempo não pára. e não pára mesmo. não dá. daria. nesse outro mundo que é possível imaginar, dá para haver um retorno, simplesmente se abolimos a noção de desenvolvimento. mas o que ocorre com o nosso corpo? o mais difícil em se rejeitar a noção de desenvolvimento é o nosso próprio corpo. e é esse o motivo pelo qual se fala tanto, hoje, nesse mundo em que imaginamos viver, em corpo. se o corpo hoje é a cifra do nosso tempo, não resolvemos nada. e pensamos estar fazendo-o confrontar com todo o mundo, ou seja, falamos em experiências corporais, físicas, mas não é nada disso. quando se fala que tudo é corpo, nada se está falando. obviamente que tudo é corpo. tudo é um único corpo. até aí está tudo sob controle. falar sobre o corpo é um ato de derrota, quando não se tem mais o que pensar, quando o pensamento já o deixou em um pequeno quarto escuro frio e escroto e você canta socorro não estou sentindo nada. pior do que ser vulnerável ao sentimento, é não sentir nada. e eu canto essa música, porque eu a adoro. não sinto nada. nem ninguém sente nada. é preciso ser cego para sentir, é preciso construir e eu sou incapaz de fazer um muro sequer.
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